domingo, 17 de abril de 2011

O Poeta da Casa Flutuante


A primeira vez que ouvi falar de Chico Flutuante foi em 1961. Estava em uma de minhas inúmeras viagens entre Manaus e Santarém. Na capital amazonense eu comprava alguns itens que revendia no estado do Pará. Certa vez num boteco perto da Praça da Matriz, em Manaus, ouvi alguém dizer:
- Pergunta pro Chico Flutuante que ele vai te orientar. Seus versos são como bálsamo e sempre dizem algo que pode ajudar alguém.
 Fiquei com aquilo na cabeça por dias. Quem seria a pessoa que tinha aquele sobrenome ou apelido tão diferente. O rapaz que conversava com o dono do bar estava cabisbaixo e triste com alguma coisa da vida e o senhor tentava consolá-lo indicando o tal de Chico Flutuante.
Na segunda vez foi noutro boteco do centro, noutra viagem. Sou um freqüentador assíduo destes. Estava tomando cerveja solitariamente à mesa quando entrou uma bela mulher perguntando onde era a cidade flutuante. Dizia precisar urgentemente falar com o tal Chico e pedir uns versos de aconselhamentos. Quando ela saiu, eu me dirigi ao dono do estabelecimento e o indaguei sobre o tal conselheiro.
- O senhor num é daqui não né? - Me perguntou ele com seu jeitão de nordestino imigrante.
- Não! Eu sou de Santarém. Venho aqui só fazer compras.
- Logo vi. Num conhecer o Chico é só gente de fora mesmo. – Me disse ele enquanto limpava o balcão com um pano úmido e escurecido por tanta sujeira acumulada da poeira das mesas.
- Mas sim, esse tal Flutuante faz o quê?
- Ele é uma espécie de guru do povo daqui. Dos que não tem condição de nada sabe. Tipo aquela pobre mulher que estava aqui ainda há pouco.
- E esse nome, de onde vem? – Quis saber eu.
- Ele mora logo ali na cidade flutuante, ai o povo o chama de Chico Flutuante ou só de Flutuante.
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A Cidade Flutuante era um emaranhado de casas construídas sobre tora de madeira que ficavam flutuando no Rio Negro em frente à cidade de Manaus. Tinha economia própria e algumas centenas de moradores. Bielas e passagens de madeira faziam o papel de ruas e por lá era um ir e vir de gente pra todo lado. Eu mesmo nunca tinha estado em suas ruas, mas muitos falavam desse cartão postal da cidade que era avistado logo quando se chegava de barco na cidade. Era reduto de rufiões, contrabandistas, prostitutas, ladrões, escritores, poetas, turistas e pessoas tantas em busca do Eldorado Amazônico ou apenas para comer um peixe frito, nos inúmeros botecos que serviam cachaça, cerveja e comida caseira feita na hora. Alguns barcos chegavam inclusive a aportar nela e deixar passageiros com seu paneiros de farinha, caixas de bananas, verduras diversas, etc. Era um mundo a parte que girava 24 horas sem parar. Era a Manaus que não dormia. Encanto para uns e desconforto para outros.
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- Olha moço! Os conselhos dele parecem coisa divina. O Homem fala simples, mas fala com o coração. Tem o dom da poesia na alma – Completava ele me quebrando os pensamentos.
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Naquela época me dividia entre minhas vendas e meu curso ginasial em Santarém. Lembro que quando comecei a ler sobre filosofia, passei a gostar de pessoas que tinha pensamento diferente e como eles tentavam mudar algo na vida das pessoas. Talvez dali meu interesse no tal Flutuante. Ou porque minha vida não estava muito boa e algo me faltava, talvez um novo rumo, um novo conselho...
Quando li que Sócrates andava com uma lanterna nas mãos pelas praças de Atenas, no século V a.C., interpelando seus interlocutores sobre tudo e todos, para que a ignorância fosse admitida, e com isso ganhara inimigo e admiradores, passei assim a me interessar por quase tudo na vida, pois sabia que nada, de nada, eu sabia. Ou seja, Sócrates ganhara mais um admirador.
Só podemos viver bem se soubermos enfrentar as paixões desta vida e delas aprendermos algo de bom.”
Palavras de meu professor de filosofia no Seminário. Foi ele que me dera um livro que trago até hoje em minhas viagens e sempre leio um trecho aqui, outro ali, como bom leitor preguiçoso que sou. O livro é uma coletânea de textos filosóficos de diversos autores antigos, permeados de anotações feitas pelo meu professor e por mim.
- Bem senhor, estou indo! Um abraço! – Disse me despedindo e tomando um último gole.
- Te mais meu amigo! – Sorriu-me o alegre homem acenando com a mão.
Deixei minha curiosidade de lado e sai para finalizar minhas compras. No dia seguinte teria que embarcar de volta para minha cidade. Meu barco sairia à noite e assim queria ter o dia livre para fazer algo que não fosse as compras de sempre. Estava com saudade dos cabarés amazonenses e de uma boa cabocla da terra para me afagar e ter um pouco de sexo.
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Os boleros eram febre na cidade naquela época. Vozes como de Bienvenido Granda, Pedro Vargas, Lucho Gatica, Elvira Rios, Nelson Gonçalves, Anísio Silva, Altemar Dutra, Dolores Duran, Maísa, Ângela Maria, Miltinho, Dalva de Oliveira, Orlando Dias, sem esquecer o cantor Salim Gonçalves, o seresteiro do Amazonas, eram ouvidas nas ondas médias da Rádio Difusora ou nos mais variados bares e cabarés da cidade.
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Sai pela Rua dos Barés e logo eu entrei numa das muitas lojas que por ali existiam. Logo estava a fazer minhas compras. Comprava produtos em geral para revenda. Trazia alguns pedidos dos ricos de minha terra e saia procurando o que eles desejavam, para assim ganhar meu trocado. Andava também por ruas onde ficavam os escritórios e os armazéns, assim da Rua dos Barés seguia ainda para a Teodoreto Souto, Marechal Deodoro, Marquês de Santa Cruz, na Ladeira dos Remédios ou pela Avenida Eduardo Ribeiro. Sempre havia um bilhete ou outro para entregar as pessoas que por ali trabalhavam. Elas faziam os pacotes com tudo que constava no bilhete e eu os levava são e salvo para as pessoas na minha cidade, assim ganhava minha vida. Era uma espécie de caixeiro viajante dos rios da Amazônia. Diferente de meu pai que vendera retalhos de pano, agulhas e linhas nos rincões nordestinos nos idos de 1940, sendo ele o verdadeiro caixeiro da família.
Havia pedido de pele de onça de jaguatirica para a mulher do prefeito. De carne de peixe boi e de outras caças; gorduras, etc. Ali se vendia de tudo, sem que a preservação fosse algo que importasse naquela época. Por todo lado podiam-se ver montes de couro de cobra, jacaré, ariranha, onça, macaco, botos e outros animais esperando o momento para serem comprados. Muitos destes eram embarcados em navios e iam para o mercado consumidor europeu ou norte-americano. Nada causava espanto no povo ou nas autoridades da época, ali Manaus era uma cidade sem lei.

No fim da noite, com tudo comprado e devidamente embarcado, eu estava exausto. Voltei para o Barco Fé em Deus II e fui para meu camarote. Decidi que iria aproveitar a noite Manauara, pois pela manhã já estava certo de que teria que conhecer e falar com o misterioso Chico Flutuante. Esse seria eu programa do dia.
No mundo existem os que se contentam com as causas e os que não se contentam nem com os efeitos. Esses últimos são conscientes da necessidade de sabedoria no homem, pois cada efeito é uma nova causa.”
Depois de um bom banho. Vesti minha calça de Linho azul marinho. Uma camisa branca de botão e meu sapato de couro preto. Um pouco de colônia pós-barba no rosto; desodorante no sovaco e pelo pescoço, braços e nas mãos algumas gotas de meu perfume importado. Estava pronto.